Ponto onde convergem as minhas emoções, postas em verso, ou prosa, degrau onde coloco o que sinto e o que desejo e que poderei, talvez, partilhar com os meus amigos.

Wednesday, May 17, 2006

SIM FAREI!

I
Sim, farei...; e hora a hora passa o dia...

Farei, e dia a dia passa o mês...
E eu, cheio sempre só do que faria,
Vejo que o que faria se não fez,

De mim, mesmo em inútil nostalgia.
Farei, farei...

Anos os meses são
Quando são muitos-anos, toda a vida,
Tudo... E sempre a mesma sensação
Que qualquer cousa há-de ser conseguida,
E sempre quieto o pé e inerte a mão...
Farei, farei, farei...

Sim, qualquer horaTalvez me traga o esforço e a vitória,
Mas será só se mos trouxer de fora.
Quis tudo -- a paz, ilusão, a glória...
Que obscuro absurdo a minha alma chora?

II

Farei talvez um dia um poema meu,
Não qualquer cousa que, se eu a analiso,

É só a teia que se em mim teceu
De tanto alheio e anónimo improviso
Que ou a mim ou a eles esqueceu...

Um poema próprio,
em que me vá o ser,
Em que eu diga o que sinto e o que sou,
Sem pensar, sem fingir e sem querer,
Como um lugar exacto, o onde estou,
E onde me possam, como sou, me ver.
Ah, mas quem pode ser o que é?

Quem sabeTer a alma que tem?
Quem é quem é?
Sombras de nós, só reflectir nos cabe.
Mas reflectir, ramos irreais, o quê?
Talvez só o vento que nos fecha e abre.

III

Sossega, coração!
Não desesperes!

Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre o sonho o que só quer não tê-lo!

Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo!

Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa
1933
(Novas poesias inéditas)

 
<BGSOUND SRC="music.mid" LOOP="INFINITE">